19.7.09

OS TRÊS OITOS: OS TRÊS TEMPOS DO TRABALHO VIVO. Manuel Gusmão

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Porque é que uma velha reivindicação do movimento operário volta a fazer sentido actualmente?

Será que a revolução científico-técnica não resolveu os problemas velhos a que aquela reivindicação visava responder?

As sociedades humanas nunca conheceram um período de aceleração das descobertas científicas e tecnológicas e de velocidade da sua transformação em força produtiva directa, como aquele em que vivemos na segunda metade do último século. A revolução científico-técnica revolucionou os processos de trabalho e teve consequências sensíveis na vida quotidiana à escala mundo; como é que é possível compreender a estranha actualidade da reivindicação dos três oitos? Será uma manifestação do conservadorismo congénito do movimento operário e das suas organizações sociais e políticas? Será que se trata, como nos tempos da primeira revolução industrial, de uma forma de resistência de quem trabalha ao progresso técnico? Será que haverá uma nova vaga de hirsutos profetas apelando à destruição das “máquinas” actuais?



A
PODEMOS CONSENTIR
NA DEPRECIAÇÃO DO TRABALHO?

Nos últimos anos do século passado e na viragem de um século para o outro, precedendo a enorme crise económica e financeira actual, assistimos a uma enorme e violenta ofensiva económica, social, política e ideológica do capitalismo visando rasgar a plataforma civilizacional de direitos políticos, económicos, sociais e culturais, conquistada pelo movimento operário internacional.

No centro dessa ofensiva está uma profunda depreciação do trabalho. Embora esta depreciação se articule com outras práticas e objectivos da política neo-liberal, ela assume em si o papel de núcleo duro da ofensiva.

A que chamamos depreciação do trabalho?
  • a continuada baixa dos salários reais ou a tendência para a baixa da parte da remuneração do trabalho na distribuição da riqueza socialmente produzida em favor do aumento da parte que dela vem a caber ao capital;
  • a tendência para o real aumento do desemprego independentemente de mínimas flutuações estatísticas, aliás manipuladas;
  • o aumento do trabalho precário nas suas diversas formas: trabalho a prazo, a recibos verdes, trabalho intermitente, etc.;
  • a facilitação por diversas vias dos despedimentos colectivos e individuais sem justa causa;
  • o agravamento das condições de trabalho;
  • a desvalorização salarial e social do trabalho intelectual em sectores como o da educação e ensino, da saúde e da administração pública;
  • a desvalorização do papel das organizações sindicais.
Desde cedo o movimento operário se apercebeu que o desemprego (a criação de um exército de reserva de mão de obra disponível) era um dos meios que o capital usava para pressionar a baixa do valor dos salários dos trabalhadores empregados e que a ameaça de despedimento era, para além de todas a justificações circunstanciais invocadas, uma outra forma de condicionar o valor da força de trabalho e de tentar obter o consentimento dos trabalhadores nessa depreciação do seu trabalho.

Só a aceitação acrítica dos dogmas do sistema capitalista podem tornar natural e racionais o poder dos capitalistas nas empresas, na sociedade e no aparelho político do estado, assim como os seus objectivos.

Ao longo do século XX, o trabalho foi gerando direitos; hoje e sobretudo agora com a crise económico-financeira, interna e internacional, o grande patronato faz uma miserável e intolerável chantagem sobre os direitos do trabalho ou sobre o trabalho com direitos, procurando que os trabalhadores, para manterem o seu emprego, sejam obrigados a cederem constantemente direitos.

B
O CONTROLO DO TEMPO:
ALIENAÇÃO DO TRABALHO
OU TRABALHO DA EMANCIPAÇÃO

A reivindicação dos TRÊS OITOS projecta uma forma de vida a partir de um equilíbrio entre o tempo de trabalho e os tempos de não-trabalho (o tempo de repouso e o tempo livre). A questão do tempo e do horário de trabalho é pois uma questão importante aqui.

No capitulo 5 do Tomo I do Livro Primeiro do Capital, Marx apresenta um modelo de compreensão e de descrição do trabalho que é preciosamente operativo. Admitindo que a produção de valores de uso ou bens não modifica a natureza universal [do processo de trabalho], por se processar a favor do capitalista e sob o seu controlo, Marx considerá-lo-á, “antes de mais, independentemente de qualquer forma social determinada.”

Marx considera então que “os elementos simples do processo de trabalho são [1] a actividade conforme ao objectivo, ou o próprio trabalho, [2] o seu objecto e [3] o seu meio” (206). Elementos simples de um processo complexo, eles encontram-se entre si em relação de transformação, de interdependência ou interdeterminação. Num segundo momento, Marx analisa o processo de trabalho enquanto produção de valor e decorrendo sob o comando dos capitalistas.

Marx procura resolver o “mistério” que reside no facto de o capitalista conseguir vender o produto do trabalho do produtor directo, por mais dinheiro do que aquele que investiu na compra de meios de produção, de matéria-prima e da força de trabalho. Marx descobre que é na compra dessa mercadoria específica, que é a força de trabalho, e no uso que lhe dá, que reside o “truque” ou o “milagre”. Porque a força de trabalho é “fonte de valor, e de mais valor do que ela própria tem”. O valor diário da força de trabalho corresponde aos meios de vida diariamente precisos para a produção da força de trabalho. Há assim uma diferença entre o valor da força de trabalho e a sua valorização no processo de trabalho. Essa diferença é assinalada por Marx ao referir-se ao valor como trabalho objectivado ou trabalho morto quando se refere ás horas incorporadas nos meios de trabalho e na matéria-prima. Ou seja o trabalho que foi socialmente em média gasto para os produzir, enquanto o uso presente da força de trabalho no presente processo de trabalho é trabalho vivo.

O que acontece então é simplesmente que o capitalista faz trabalhar aquele que lhe vendeu a força de trabalho umas horas para além daquelas que são medidas pelo valor que ele pagou na compra. Ora é este trabalho a mais e não pago que vai repercutir no preço a que o capitalista vai vender o “seu” produto. A análise de Marx vai ainda refinar a sua complexidade, mas este admirável capítulo do Capital já nos elucida o bastante para percebermos a importância da definição do horário de trabalho.

Não é pois uma questão de somenos que entre as propostas de alteração ao Código do Trabalho, apresentadas pelo governo do PS conste a famosa proposta de um “banco de horas” que visa desregulamentar o horário de trabalho, permitindo o aumento dos limites diários e semanais, sem pagamento de trabalho suplementar ou nocturno. Ao longo do século XX, as reivindicações de uma redução do horário de trabalho (sem redução de salário) sucederam-se. Hoje, o patronato, sempre que pode e que tem a força suficiente, impõe ou tenta impôr, por todos os meios (neste caso, aproveitando a boleia que o governo lhe oferece) todas as medidas que directa ou indirectamente lhe garantam o aumento do horário de trabalho, ou seja o aumento do sobretrabalho não pago, ou seja, a sobre-exploração do trabalho e o consequente aumento dos seus lucros.

C
SOCIALISMO OU BARBÁRIE

O modelo do processo de trabalho, em Marx, é suficientemente ágil e flexível para lhe permitir mostrar todas as formas de exploração, opressão e alienação do trabalho, nas condições mutáveis do capitalismo. Mas Marx, simultaneamente aponta para que na dinâmica interna a cada processo e no entrelançamento dos diferentíssimos processos de trabalho, reside em potência o carácter transformador do trabalho humano e o seu desempenho como livre jogo das forças humanas. A luta pela qualidade dos tempos de não trabalho é decisiva para a alternativa entre a alienação do trabalho e a humanização do tempo de trabalho, assim como para a conquista de condições para a emancipação dos trabalhadores.

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