4.8.09

O TRABALHO INTELECTUAL E O EMPREGO DO TEMPO. Eduardo Chitas




foto de Sara Gonçalves

Não vou propor nenhum questionário sobre o que faz cada um de nós desse bem precioso que é o tempo humano, no tão diverso uso quotidiano que lhe damos.
O problema é outro. No meu modo de ver, não é possível subestimar a importância deste assunto pelos seguintes motivos, conexamente considerados:

1) Quer dentro, quer fora do âmbito estrito da ciência económica, o tempo humano, em qualquer das suas variáveis, diz respeito a toda a actividade humana sem excepção. E qualquer delas, ao que me parece, passa pelo crivo obrigatório chamado emprego do tempo Mesmo o «direito à preguiça» (Paul Lafargue), mesmo o dolce far niente são emprego do tempo!
2) Mais evidente se torna, sendo assim, que o trabalho intelectual, por diverso e complexo que possa ser, é ele próprio parte de um todo, em última análise a divisão social do trabalho em cada tempo e lugar, isto é, em cada sociedade concreta, onde elementos de estudo estreitamente interligados, como– tempo social e tempo biográfico,– desenvolvimento humano e capacidade criadora,– classe social, camada social e personalidade individual,entre outros, requerem também análise concreta, por conseguinte cooperação de saberes sociais (incluindo as ciências do sujeito humano), por objectivos necessários, exequíveis e previamente definidos.
3) Julgo que uma atenção ajustada à definição de tais objectivos teria para nós um benefício de inteligibilidade não muito distante, em importância teórica e prática, daquele que advém, por exemplo, do estudo de alguns dos mestres da filosofia alemã clássica (como fonte teórica do marxismo, não o esqueçamos). Com base nesse exemplo, àquele benefício teórico-prático poderia eu chamar aqui avanço em autoconsciência, mediante essa forma de reciprocidade activa, não-linear, que é o reconhecimento do meu trabalho reflectido e de certo modo reproduzido no trabalho de todos, e o de todos no de cada um. Por isso, se a autoconsciência e o reconhecimento são mutuamente remissivos no trabalho intelectual, cedo ou tarde o tempo humano (§ 1) e a divisão social do trabalho (§ 2) tornam-se condição necessária, mas, claro está, não suficiente, para a reconsideração do emprego do tempo.
4) O quarto e último motivo (podia também ser o primeiro!) chama-se Marx. Melhor do que quase todos no seu tempo, ele abriu caminho a tudo o que, em matéria de ciência do tempo humano, assenta sobre estas duas premissas :– o tempo é o lugar do desenvolvimento humano,– o trabalho é expressão da vida.
Isto, qualquer que tenha sido na sua própria vida a síntese de tempo e trabalho. Ora, sabemos que um traço distintivo dessa síntese foi a luta pelo tempo útil. Não entrando na retaguarda silenciosa da esfera privada (hoje, aliás, amplamente documentada), a luta pelo melhor emprego do tempo, em Marx, consiste em fazer coexistir o tempo útil do dia e da noite, muitas vezes na doença e quase sempre na escassez ou na falta de meios de vida da família Marx durante os mais de trinta anos da emigração londrina.
Numa carta ao socialista utópico alemão Ferdinand Lassalle, de 22.02.1858 (Marx está portanto a entrar nos seus quarenta anos), escreve ele a propósito dos trabalhos económicos que tem em mãos :
«A coisa avança muito lentamente, porque assuntos que há muitos anos se têm como objecto principal de estudo, quando as contas com eles deviam estar saldadas, mostram novos aspectos e solicitam nova ponderação. Além disso, não sou senhor do meu tempo, mas antes servo dele. Resta-me só a noite para mim mesmo, e muitas vezes ataques e recaídas de uma doença de fígado ainda perturbam este trabalho nocturno.» 1
Ser servo no emprego do tempo distribui-se pelos outros aspectos que sobressaiem deste fragmento de carta :
– a investigação em tempo longo,
– a dificuldade objectiva e subjectiva de pôr-lhe termo
– o trabalho nocturno e a doença.
Mudando o que houvesse a mudar, pergunto: quantos de nós, nas condições de hoje, poderiam declarar-se completamente ao abrigo de análoga conjunção de factores? Mais: lado a lado connosco está, objectivamente, a maioria dos intelectuais assalariados, numa diferenciada mas acentuada precariedade no emprego racional do tempo – seja como tempo livre, seja como tempo de formação permanente, seja, ainda, como tempo de capacidades, aptidões e talentos exercidos.
1 Marx-Engels Werke, Bd. 29, Berlin 1978, p. 550.
Eduardo Chitas é docente de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e tradutor

Sem comentários:

Enviar um comentário